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Invasores de Corpos – Lições em Conformismo

 


The Body Snatchers”, assim como o primeiro filme baseado na obra, Vampiros de Almas, se tornaram parábolas anticomunistas. As plantas que vieram do espaço vieram para transformar o bom indivíduo na parte de um todo, sem sentimentos, servindo somente ao bem maior da raça alienígena, ou, trazendo para a nossa realidade, ao Estado, cerceador de liberdades.

Uma boa subversão realizada na versão de Philip Kaufmann, Invasores de Corpos, é de tornar a transmutação realizada pelos alienígenas como uma submissão ao status quo, e não tanto quanto uma inversão dos valores supostamente americanos, como nota o roteirista Mark Salisbury em seu texto para a BFI, o filme ‘sublinha o fim do "flower power" e o início da "Geração Eu".’

Uma profunda descrença com as instituições marca a narrativa do filme, especialmente quando ele se aproxima do final. Matthew Bennell (Kiefer Sutherland) busca, a todo momento, a ajuda de autoridades, somente para elas se mostrarem ineficientes ou já tomadas pela invasão.

Antes da situação se tornar generalizada, há uma cena com o psicólogo interpretado por Leonard Nimoy, onde uma mulher busca sua ajuda, afirmando que seu marido não é a mesma pessoa, que ele está transformado, não o reconhece. Ao invés de escutar os anseios da mulher, Nimoy só consegue reforçar a importância do laço matrimonial, e declarar que não há nada de errado, ela só precisa se acalmar e conversar com o cônjuge, ao invés de tomar uma decisão que poderia destruir a unidade familiar. Um conselho similar é dado a Elizabeth (Brooke Adams), cujo namorado também foi substituído por um duplo, mas seu temor não encontra respaldo em quase ninguém.

Assim, se o perigo antes era ser transformado em algo que não reconhece, agora o medo é de ser assimilado em uma estrutura que só reforça valores já vigentes. É sintomático que esse Invasores de Corpos coloque somente os personagens humanos em situações que suas figuras são distorcidas, seja por espelhos ou sombras. Eles são os “errados” nessa situação toda, enquanto os invasores fazem uso de toda uma estrutura de controle já existente para realizar seus objetivos. Um ponto importante logo no início do filme é o uso de caminhões de lixo para se desfazer dos restos das pessoas já consumidas, e mais a frente, polícia, exército, e o aparato estatal como um todo, acabam servindo aos propósitos da invasão sem grandes alterações.

Se nos anos 50, alcançar as autoridades representa a possível salvação da raça humana, nos anos 70 isso pouco importa, e no máximo pode acelerar a nossa destruição. Conforme a trama progride, todos os espaços se tornam passiveis de paranoia, especialmente os ambientes familiares. Bennell retorna ao seu posto de trabalho, no Departamento de Saúde, que está completamente vazio. O plano destaca que ao final de um corredor, está o zelador, cercado de sombras, vigiando os movimentos de Bennell. Nos ambientes externos, a multidão só reforça a desconfiança: estariam todos transformados? É impossível saber, enquanto a câmera passa pelos rostos sem tempo de entendermos suas feições faciais.

O sentimentalismo que existe entre Bennel e Driscoll só demarca a futilidade da resistência. O amor que existe entre eles não os salva e nem resiste a transformação. Na conclusão, os dois retornam ao trabalho e se veem no corredor, mas nada desperta entre eles.  Uma sociedade que gira plenamente, todos fazem o que tem que fazer, sem sentimentos ou outras aspirações, nada mais do que bons funcionários. Quantas pessoas já não são assim?

 


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