Gojira, 1954. Dir. Ishiro Honda
Um momento em particular chama atenção em Gojira, que envolve personagens sem nome, cuja presença de tela não dura mais que meio minuto. No meio do caos e destruição causados pelo monstro, uma mãe está presa com suas três filhas dentro de um prédio em chamas. Abraçada às crianças, a mãe declara: “Logo estaremos com seu pai, só mais alguns minutos”.
The aftermath of Godzilla's attack (1954)
O filme de Ishiro Honda é despido de suspense. Os protagonistas nunca estão no meio do perigo, a narrativa faz questão de posicioná-los longe da fúria do monstro radioativo, meras testemunhas incapazes de fazer algo para impedir o arrasamento de Tóquio.
Por outro lado, a obra nunca foge das imagens da guerra, e é nisso que reside sua força. Vemos uma criança sendo examinada com um contador Geiger, que apita freneticamente. Outra lamenta a morte da própria mãe diante dos seus olhos, em um hospital lotado de feridos. A principal cena de ataque do longa reserva um breve momento para mostrar a cena que apontei no início do texto, e finda a destruição há uma preocupação em mostrar as consequências, a cidade e as vidas arrasadas.
Ouvir falar da figura de Godzilla como representação dos traumas de guerra é uma coisa, vê-las na tela é outra. Como bom colonizado que sou, meu primeiro contato com o monstro foi por meio das suas versões americanas, a de Roland Emmerich nos anos 90, e a da Legendary, em 2014, que deu início ao chamado MonsterVerse, junto com King Kong.
O subtexto ainda está presente nesses dois, é claro, mas incrivelmente sanitizado. No filme de 98, a origem do ser ainda é nuclear, enquanto o outro se inicia com referência à Fukushima, mas nada chega perto da estreia do monstro no cinema. Guerra é horror, e Gojira é impiedoso nesse sentido. Se as cenas de destruição nas versões americanas são, de certa forma, divertidas, com o raio atômico sendo um momento esperado ao invés de temido, por exemplo, não há espaço para isso nos anos 50, a memória da bomba é forte demais para permitir qualquer outra coisa.
Chega a ser engraçado que este seja o início de uma franquia onde Godzilla, eventualmente, se transforma em herói e tem até mesmo um filho (Son of Godzilla, 1967), lutando contra outros monstros gigantes, como aconteceu já no ano seguinte, em Godzilla Raids Again. Nesse sentido, Godzilla se assemelha a outro símbolo da guerra, mas de outra década: John Rambo.
Se Programado para Matar termina com o soldado aos prantos, desabando sob o peso das memórias da Guerra do Vietnã, os filmes seguintes o transformam no avatar do conflito, encarando os inimigos sem camisa e com uma gigantesca metralhadora em punho.
Diferentemente de Rambo, Zilla consegue manter suas duas versões vivas, tanto de monstro, como de defensor da terra.
Shin Godzilla, 2016. Dir. Hideaki Anno & Shinji Higuchi
Após Godzilla: Final Wars em 2004, o monstro hibernou por dez longos anos, retornando pelas mãos de Hideaki Anno, a mente por trás de Neon Genesis Evangelion, com Shin Godzilla, literalmente, “Novo Godzilla”, numa tradução literal.
Mesmo sendo um resgate da figura do monstro como algo ameaçador, o reboot, à sua maneira, segue sendo um embate entre dois titãs: é Godzilla versus o Leviatã de Hobbes, com o ataque sendo visto e analisado pela perspectiva de vários membros do Governo japonês.
A narrativa conta com dois momentos. O primeiro é quase uma comédia kafkiana, onde o imobilismo burocrático toma conta. São reuniões seguidas de reuniões, que pouco decidem, informações são transmitidas para, logo em seguida, serem desmentidas. Cenas e mais cenas de telefones sendo utilizados, arquivos retirados e mesas sendo organizadas. É uma sequência de absurdos, onde ninguém parece disposto a assumir a responsabilidade, jogando o dever de fazer o que é necessário para outro órgão estatal.
O segundo momento é o inverso deste. Se Shin Godzilla é crítico da lentidão estatal em agir, a trama sabe reconhecer a importância de uma entidade capaz de organizar esforços monumentais em prol do bem comum. Não temos heróis ou figuras trágicas individuais aqui, como Serizawa em Gojira, mas somente a capacidade de organização e colaboração de pessoas ao redor do mundo, facilitadas pelos mecanismos estatais, que usa de um sem fim de táticas para acabar com o monstro. A luta final remete a alguns momentos de Evangelion, onde Anno, similarmente, buscava mostrar as minúcias da operação dos robôs EVA. Cada ação era acompanhada de uma série de procedimentos que afetavam toda a cidade de Tóquio. Difícil esquecer, por exemplo, do episódio onde a utilização de um gigantesco rifle de precisão causa um blecaute a cada disparo.
A visão da destruição agora ganha
um ar contemporâneo. O século XXI foi marcado por desastres acompanhados mais
de perto do que antes era possível. A popularização e portabilidade das câmeras
de vídeo, assim como dos celulares, e Shin
incorpora isso. Não há personagens individuais civis, mas sua presença é
sentida por meio das imagens que produzem. O rastro de destruição é acompanhado
pelas redes sociais e smartphones,
muitas vezes no centro do caos, no meio das evacuações, entre os passos do
monstro. Como em Gojira, são poucos
momentos onde os protagonistas estão em risco direto de morte, mas agora, a
tecnologia permite uma proximidade em tempo real da destruição. Mas também há
espaço para o assombro diante da escala da devastação. A cena abaixo fala por
si só.
Shin
Godzilla Atomic Breath (Aliento Atomico)
Shin Godzilla não é o que tradicionalmente se espera de um filme de monstro, e acredito que até dentro do cânone de Godzilla ele seja particularmente estranho, afinal, boa parte de sua duração se dá em salas de reunião e escritórios, e o próprio monstro demora a tomar a forma que lhe é conhecida, aparecendo primeiro como um ser rastejante de olhos arregalados. Anno e Higuchi traçaram seu próprio caminho na franquia, revitalizando sua iconografia para uma nova era.
Godzilla Minus One, 2023. Dir. Takashi Yamazaki
Nos filmes anteriores abordados neste texto, há um certo mistério em relação à Godzilla. Suas primeiras aparições são meros vislumbres, rápidos o bastante para sabermos que é algo monstruoso, mas sem conseguir definir exatamente o que é, e pouco a pouco, as peças vão sendo coletadas, geralmente logo antes de toda a destruição começar.
Minus One é mais direto, e introduz o monstro em menos de 20 minutos, com direito a um personagem dizendo “é o Godzilla!”. Essa abordagem faz sentido, afinal, são 70 anos de história, quem comprou o ingresso sabe que, em algum momento, o Japão será atacado pelo monstro que está no título, por que não começar mostrando logo o que todo mundo veio ver, não é mesmo?
Mas essa troca do suspense pelo imediatismo, a princípio bem vinda, revela a nova filosofia da versão de Takashi Yamazaki, que se preocupa mais com o espetáculo, com a escala da destruição, do que com suas consequências.
Minus One é um remix da versão original, mas sacrifica o horror deste em troca da escala e do melodrama. Se antes o trauma da guerra era coletivo, ele agora se concentra nos ombros do protagonista, Shikishima, assombrado pela memória dos colegas que não conseguiu salvar no primeiro ataque de Godzilla, além da vergonha de ser um piloto kamikaze que não cumpriu sua missão suicida.
A presença de um protagonista bem definido é uma das novidades, pois, tanto em Gojira como em Shin, os personagens são mais utilitários do que qualquer outra coisa, sendo meramente pontos de vista para ancorar o desenrolar da trama. Aqui, a ligação de Shikishima com Godzilla é muito mais direta, com a derrota do monstro sendo o grande foco do personagem, e são raros os momentos onde o kaiju aparece sem o piloto estar envolvido de alguma forma.
Assim, é uma história muito mais pessoal do que visto previamente no cânone japonês, que remete mais a versão de Gareth Edwards, de 2014, que deu início ao atual MonsterVerse, onde o Tenente Ford, personagem de Aaron Taylor-Johnson, também tinha questões particulares com os monstros que dominam a narrativa, com os M.U.T.Os sendo responsáveis pelas mortes de seus pais.
Logo, é um filme muito mais americanizado em sua trama, e também na forma. A destruição aqui vira espetáculo, algo muito típico de quase todo filme desastre estadunidense, como a carreira de Roland Emmerich (olha ele aí novamente) bem atesta. A cena de Godzilla carregando seu raio atômico, por exemplo, é acompanhada de um meticuloso travelling acompanhando cada espinha do seu dorso se iluminando e estendendo conforme o ataque é carregado.
GODZILLA MINUS ONE FULL Atomic Breath Scene in order 1080p60
É absolutamente maneiro, na falta de uma palavra melhor,
mas logo em seguida, a explosão criada pelo raio é a mesma da bomba atômica,
resgatando a metáfora base da mitologia. Não é mais tão maneiro assim, e evidencia certo dilema de Minus One, ele quer entreter, e a comparação que o crítico Sérgio Alpendre fez com o cinema de
Spielberg, O cara do blockbuster, é
apta nesse sentido, mas se depara com uma herança dolorosa que não permite
muito tal sensação. Godzilla é guerra, e guerra é horror.
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