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Ferrari - O que é um nome?


Saindo da sessão de Ferrari, minha recepção inicial foi de certa frieza. Com o cinema de Michael Mann, me acostumei com ritmos mais energizados de suas obras. Os tiroteios de Fogo Contra Fogo e Inimigos Públicos, o final grandioso, mas melancólico, de O Último dos Moicanos ou a simplesmente triunfal conclusão de Ali, que reafirma a posição do biografado como um dos maiores boxeadores de todos os tempos, encontrando o seu lugar no mundo.

Não que Ferrari seja lento, tedioso ou coisa do tipo. O cuidadoso olhar de Mann para ação segue ali nas corridas, nos colocando ao lado do piloto, observando cada troca de marcha, freada, acompanhando cada curva fechada e aceleração. Mas esse não é o foco. Se com Muhammad Ali, em 2001, o diretor traça o retrato de um homem entendendo o seu poder e posição, com Enzo Ferrari (Adam Driver), a questão é outra. O lendário dono da Ferrari sabe exatamente quem ele é, mas o que isso significa para aqueles que o cercam?

Ao invés de buscar representar toda a vida do fundador, armadilha comum das cinebiografias, a narrativa se concentra no ano de 1957, onde o protagonista se encontra em algumas encruzilhadas. A empresa corre risco de falir, com as competidoras, como a Maserati, batendo recordes que antigamente pertenciam à Ferrari. A relação com a esposa e sócia, Laura (Penelope Cruz) se tornou mais uma transação de negócios do que um casamento, enquanto sua amante, Lina Lardi (Shailene Woodley) faz uma pergunta importante: Qual será o sobrenome do filho dos dois? Lardi ou Ferrari?

O que quer dizer ser um Ferrari? Parece mais uma maldição do que outra coisa. Os minutos iniciais do filme são compostos por ambientes relacionados com a morte. Enzo visita o túmulo do seu filho com Laura, onde confessa ouvir as vozes de todas as pessoas próximas que já faleceram. A igreja, similarmente, possui sua relação com a morte, afinal, o corpo de Jesus, filho de Deus, é o seu principal símbolo.

Ainda sobre esse espaço, Mann também o utiliza para demonstrar o que é verdadeiramente sagrado para Ferrari: as corridas. Enquanto o padre reza sua missa, Enzo e seus associados cronometram o tempo do adversário, que corre em uma pista próxima. A montagem colide os espaços, cada hóstia é um ponteiro do relógio que se move, uma curva de Jean Behra, piloto da Maserati na época, que conquista o recorde.

Os locais habitados pelos personagens, assim como a forma que Mann escolhe para filmá-los, são muito simbólicos das suas relações. Com Lina, as cores são mais quentes, e eles são frequentemente posicionados lado-a-lado, parceiros, pessoas que se amam. Com Laura, a casa dos Ferrari é quase sempre escura, e o casal é colocado frente a frente: iguais, mas em oposição, reforçando a natureza transacional do seu relacionamento.

Essa divisão entre sentimento e frieza está presente no próprio Ferrari. Ferrari não é uma hagiografia, e não se furta de mostrar aspectos mais ásperos do protagonista. Se é evidente seu carinho e apreço pelos filhos, tanto o falecido quanto o que existe fora do casamento, e aqui vale destacar a cena onde ele explica um conceito de engenharia para o pequeno Piero, sua frieza também está lá. Após a morte de um piloto, ele simplesmente informa ao novo candidato que ele começará na segunda, enquanto Laura vê como um problema burocrático: é preciso encerrar o salário do falecido.

Assim, é claro que saí frio do filme, mas não é de forma alguma um demérito. Ferrari não é sobre triunfos, pura e simplesmente, sobre como a marca Ferrari é importante para a indústria automobilística, mas sobre o peso desse nome. Há muitos sacrifícios envolvidos, o vermelho, tão representativo da marca, também é de sangue. Após um acidente particularmente fatal, a câmera se demora nos restos mortais deixados para trás. Um corpo cortado no meio, membros espalhados pela estrada. Não dá para esquecer. Não é para esquecer.

 


 

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