É uma sensação curiosa
assistir Culpa e Desejo enquanto certas discussões simplórias sobre o
filme Pobres Criaturas ecoam na internet. A obra de Lanthimos é de uma
estranheza segura típica de um filme projetado para ser indicado ao Oscar, e
mesmo sendo óbvio, diversos espectadores escolheram fazer a leitura mais rasa
possível, posicionando Bella Baxter (Emma Stone) como uma figura sem agência,
simplesmente levada adiante pelos desejos dos homens ao seu redor.
Se mesmo diante do filme
cujo texto deixa evidente que a protagonista está em plena posse das suas
capacidades, me pergunto como essas pessoas lidariam com Culpa e Desejo,
que mostra uma mulher, a advogada Anne (Léa Drucker), similarmente em completa
posse de si mesma, mas cujas ações são repreensíveis. Se no filme americano
isso é um ponto de partida para a protagonista se entender diante do mundo, a
diretora Catherine Breillat propõe algo um tanto mais complicado.
O longa gira em torno do
relacionamento de Anne com Théo (Samuel Kircher), seu enteado de 17 anos. Há
certa franqueza na maneira que esse relacionamento se desenvolve, é menos uma
questão de “ceder as tentações’’ e mais uma relação construída, a princípio,
pelo carinho mesmo. A cena que ilustra o poster do filme, por exemplo, onde
Anne decide sair de um almoço particularmente entediante para tomar uma cerveja
com o jovem. É uma sequência que não estaria fora de lugar em um romance
adolescente, com Anne, sorridente, colocando os braços ao redor de Théo
enquanto eles sobem no patinete elétrico, o vento soprando o cabelo dos dois,
rostos próximos. O próprio jovem tem um quê de galã adolescente angelical, sua
figura me lembra um pouco Tadzio de Morte em Veneza, cuja beleza representou
a derrocada de Aschenbach.
É um filme muito tátil. Os
toques são filmados de modo íntimo, demorados. Acompanhamos toda a duração do
primeiro beijo entre os dois e o prazer sempre está ali, presente. É um filme
praticamente sem nudez, mas muito sensual, onde os rostos se contorcendo diante
do clímax ganham mais destaque no sexo que outras partes do corpo. A situação é
problemática, mas Breillat não se furta de mostrar que sim, há gozo ali. Há o
reconhecimento que a transgressão carrega também certa carga de excitação.
Mas, como todo amor de verão,
temporada que faz parte do título original, o affair chega ao fim da
única maneira que poderia chegar, com a descoberta. Diante do risco que a
revelação impõe sob sua vida, Anne...mente. Acusa Théo de inventar toda
a situação por não gostar dela.
Antes de mesmo de Théo
entrar em cena, Culpa e Desejo nos mostra outras mulheres ao redor de
Anne, sempre em situações desfavorecidas. Uma delas é uma jovem que foi
abusada, outra é uma amiga cujo marido não cumpre o combinado da guarda do
filho. Seria a mentira de Anne uma tentativa de manter o controle da sua vida?
Cercada de mulheres que, de uma forma ou de outra, são vítimas, ela assume seu
controle a partir de um ângulo contraditório: se colocando como vítima de um
jovem malicioso. Anne age como advogada
de si mesmo, e coloca todo o seu conhecimento em casos similares a seu favor.
É uma mulher tentando
sobreviver de uma situação causada por ela mesma. As soluções corretas deixaram
de ser opção, e o único caminho é a mentira que traz mais conforto, mas nem
isso será possível. Breillat encerra o filme com uma escuridão que lentamente
toma conta do quadro, enquanto Anne abraça seu marido. Todos seguirão em
frente, mas a que custo?
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