Talvez a coisa mais famosa do filme Kapó, de Gillo Pontercorvo, não seja nada relacionado ao filme propriamente dito, mas sim da reação de certo crítico a uma decisão estilística do diretor. Em dado momento da história, que lida com os horrores do campo de concentração nazista, uma personagem comete suicidio se jogando contra uma cerca elétrica, após sua morte, a câmera reenquadra o corpo da personagem, ainda preso a cerca, se aproximando do mesmo e realizando um tilt para cima. É esse pequeno momento que resultou no texto “Da Objeção”, de Jacques Rivette, onde escreve que o homem que toma tal decisão merece “nada mais do que um profundo desprezo”.
Esse provavelmente é um dos episódios mais emblemáticos sobre uma discussão que dura até hoje sem respostas muito concretas, que diz respeito ao como representar situações que requerem um pouco mais de responsabilidade por parte dos envolvidos. Como representar o holocausto? a escravidão? Essas situações de sofrimento inimaginável dirigidas a setores específicos da humanidade? A pergunta não precisa necessariamente ser somente sobre eventos históricos, é claro, mas de um modo geral, pode ser resumida da seguinte maneira: como representar o sofrimento?
Sofrimento está no cerne do curta Dois Estranhos, que, para dar os devidos créditos, possui uma ideia muito ingeniosa, a de usar a estrutura narrativa de loops temporais para tratar da violência policial direcionada a afro americanos, evento tristemente recorrente no país, que realmente parece viver em um loop sobre essa questão, já que morte após morte, protesto após protesto, governo após governo, pouco parece ser feito de fato para mudar a situação.
O problema é que, ao conceber a produção, os diretores Travon Free (que também é roteirista) e Martin Desmond Roe, parece não terem pensado em ir muito além da soma entre “firula narrativa” e “assunto do momento”, que funcionou muito bem para ganhar um Oscar, mas cujo resultado final é de mau gosto, para dizer o mínimo.
O curta tem como protagonista Carter (Joey Badass), um jovem designer negro que após passar a noite na casa de Perri (Zaria Simone), se vê preso em um pesadelo: ao sair do apartamento de sua companheira e tentar ir para casa, ele é morto por um policial, o Oficial Merck (Andrew Howard), e assim que morre, novamente acorda ao lado de Perri, no mesmo dia, para novamente ser morto nas mãos do mesmo policial.
O que poderia ser uma oportunidade de explorar um grave problema sistêmico, se torna um exercício vazio de sinalização de virtude, com o curta colocando certos símbolos de modo a simplesmente mostrar que seus realizadores estão do “lado certo”, como por exemplo, começar o curta mostrando a capa do livro de James Baldwin Da Próxima Vez, o Fogo, que discute justamente o racismo nos Estados Unidos. No contexto da produção, é muito significativo que a imagem do livro de um pensador negro seja utilizada como decoração de set, mas que suas palavras jamais constem no mesmo, de modo literal ou figurativo.
A imagem de um homem negro morto
ou morrendo é explorada de diversas maneiras ao longo do filme, até mesmo por
decorrência da própria estrutura narrativa, mas logo fica claro que essa
repetição procura mais o choque barato do que qualquer outra coisa. Qual o
motivo para reencenar a morte de Eric Garner, morto por sufocamento em 2014?
Mais uma situação para mostrar o quanto as mentes por trás da produção estão
“cientes” do problema?
A cada novo desdobramento, Dois Estranhos se mostra mais inapto a trazer à tona as discussões que acredita estar colaborando, se servindo de imagens “potentes”, mas completamente vazias de sentido, como uma poça de sangue que apresenta o formato do continente africano. A crítica a violência policial se esvazia completamente quando Merck se revela ser um completo psicopata que gosta de viver nesse loop, eternamente matando Casey. Não se trata mais de um problema estrutural, mas sim dos atos de um policial particularmente maléfico que se aproveita dessa situação inusitada.
A conclusão do curta consegue
adicionar ainda mais sal na ferida, pois parece ser retirada de algum desenho
dos anos 80 onde todos terminam rindo para a câmera, com Carter partindo para
mais uma repetição, mas com um sorriso no rosto, dizendo que não importa o que
aconteça, ele vai chegar em casa um dia. Uma música levemente animada começa a
tocar ao fundo, enquanto nomes de pessoas negras mortas pela polícia começam a
subir na tela, enquanto a música segue tocando, com a seguinte letra “That's just the way it is/
Some things will never change” (É desse jeito que são as coisas/Algumas coisas nunca irão mudar). Se
o simples reenquadramento do corpo desfalecido em Kapó fez com que Pontecorvo merecesse o desprezo de Rivette, mal
consigo imaginar o que Travon Free e Martin Desmond merecem por terem realizado
tal obra.
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