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Mostrando postagens de fevereiro, 2024

Dois Estranhos (2021), de Travon Free e Martin Desmond Roe

  Talvez a coisa mais famosa do filme Kapó , de Gillo Pontercorvo, não seja nada relacionado ao filme propriamente dito, mas sim da reação de certo crítico a uma decisão estilística do diretor. Em dado momento da história, que lida com os horrores do campo de concentração nazista, uma personagem comete suicidio se jogando contra uma cerca elétrica, após sua morte, a câmera reenquadra o corpo da personagem, ainda preso a cerca, se aproximando do mesmo e realizando um tilt para cima. É esse pequeno momento que resultou no texto “Da Objeção”, de Jacques Rivette, onde escreve que o homem que toma tal decisão merece “nada mais do que um profundo desprezo”. Esse provavelmente é um dos episódios mais emblemáticos sobre uma discussão que dura até hoje sem respostas muito concretas, que diz respeito ao como representar situações que requerem um pouco mais de responsabilidade por parte dos envolvidos. Como representar o holocausto? a escravidão?   Essas situações de sofrimento inima...

Ferrari - O que é um nome?

Saindo da sessão de Ferrari , minha recepção inicial foi de certa frieza. Com o cinema de Michael Mann, me acostumei com ritmos mais energizados de suas obras. Os tiroteios de Fogo Contra Fogo e Inimigos Públicos , o final grandioso, mas melancólico, de O Último dos Moicanos ou a simplesmente triunfal conclusão de Ali , que reafirma a posição do biografado como um dos maiores boxeadores de todos os tempos, encontrando o seu lugar no mundo. Não que Ferrari seja lento, tedioso ou coisa do tipo. O cuidadoso olhar de Mann para ação segue ali nas corridas, nos colocando ao lado do piloto, observando cada troca de marcha, freada, acompanhando cada curva fechada e aceleração. Mas esse não é o foco. Se com Muhammad Ali, em 2001, o diretor traça o retrato de um homem entendendo o seu poder e posição, com Enzo Ferrari (Adam Driver), a questão é outra. O lendário dono da Ferrari sabe exatamente quem ele é, mas o que isso significa para aqueles que o cercam? Ao invés de buscar representar to...

Vidas ao Vento – Sonhar e viver, apesar de tudo

  Jiro Horikoshi (Hideaki Anno) é, acima de tudo, um sonhador. Em Vidas ao Vento , é no espaço onírico que sua paixão por aviões é introduzida, a princípio, como piloto. Em uma das primeiras cenas do filme, ele conduz o veículo, que mais parece uma ave, enquanto dorme. Mais significativo do que a mobilidade área, é a presença de outras pessoas, vendo seus feitos, acenando e comemorando. A aeronave como espaço comunal é algo recorrente. Mais tarde, Jiro passará a sonhar com o engenheiro italiano Giovanni Caproni, cujas invenções, pelo menos no espaço onírico, são gigantes, com vários andares, e cheia de pessoas. “Aqui estão meus funcionários e suas famílias” declara, enquanto conduz Jiro para dentro de sua criação. É mais casa que avião, transbordando de vida. É evidente a predileção de Miyazaki em mostrar seu protagonista como alguém alheio a certos aspectos do mundo real. O Jiro de Vidas ao Vento é baseado no engenheiro aeronáutico japonês de mesmo nome que teve grande suce...

Zona de Interesse – Horror seguro

  Poucos conceitos sociológicos permanecem tão atuais quanto o da “banalidade do mal”, cunhado por Hannah Arendt durante o julgamento de Adolf Eichmann, onde ela observou que o nazista não era uma grande mente do mal, mas sim um burocrata, cujo transporte e extermínio de milhares de judeus era uma questão de cumprir ordens e fazer o seu trabalho, pura e simplesmente. Nesse sentido, Zona de Interesse poderia ser chamado de “Banalidade do Mal – O Filme”, onde diretor Jonathan Glazer busca retratar a vida “comum” de uma família nazista , que é vizinha de Auschwitz, e o campo de extermínio é simplesmente a paisagem acima do alto muro que circunda o ambiente dos Höss enquanto seus filhos brincam nos jardins e a matriarca, interpretada por Sandra Hüller, recebe visitas e coordena suas empregadas. Formalmente, o longa é o mais direto possível, as composições são estáticas, rígidas e evitando qualquer tipo de manipulação emocional. Não há closes, por exemplo, e há uma certa naturalida...

As Bestas - Simplificar em nome da ameaça

  Spoilers para As Bestas abaixo. Há um momento em As Bestas que sua narrativa parece fugir da dicotomia “personagem bom vs personagem mal”, onde seus antagonistas escapam do rótulo de ameaçadores que persiste neles até então. Antoine (Dénis Menochet) decide conversar com Xan (Luiz Zahera), vizinho que desaprova a presença do francês na pequena vila espanhola de Galicia, e é um dos poucos votos contra à venda das terras na região para um projeto de turbinas eólicas. Antoine explica para seu algoz que a região representa, para ele, um projeto de vida, uma terra que ele pode cuidar com suas próprias mãos e ser livre. Mas então, Xan retruca que ele não conhece outra vida além daquela. O trabalho que Antoine vê com tanta alegria e possibilidade, representa para o nativo a dor nas costas que o acomete há anos, uma existência que só serve para cuidar de gado e não consegue nem mesmo ter uma parceira, pois poucas pessoas restam ali. O que ele mais quer é vender suas terras e ter a po...