Spoilers para As Bestas abaixo.
Há um momento em As Bestas que sua narrativa parece fugir da dicotomia “personagem bom vs personagem mal”, onde seus antagonistas escapam do rótulo de ameaçadores que persiste neles até então. Antoine (Dénis Menochet) decide conversar com Xan (Luiz Zahera), vizinho que desaprova a presença do francês na pequena vila espanhola de Galicia, e é um dos poucos votos contra à venda das terras na região para um projeto de turbinas eólicas.
Antoine explica para seu algoz que a região representa, para ele, um projeto de vida, uma terra que ele pode cuidar com suas próprias mãos e ser livre. Mas então, Xan retruca que ele não conhece outra vida além daquela. O trabalho que Antoine vê com tanta alegria e possibilidade, representa para o nativo a dor nas costas que o acomete há anos, uma existência que só serve para cuidar de gado e não consegue nem mesmo ter uma parceira, pois poucas pessoas restam ali. O que ele mais quer é vender suas terras e ter a possibilidade de uma vida menos dura, longe do ambiente que tornou seu irmão, Loren (Diego Anizio) deficiente, após um coice de cavalo na cabeça.
É a primeira e única vez que Xan se torna algo mais que uma presença ameaçadora na vida de Antoine, fugindo da pecha fácil de fazendeiro intransigente e ganancioso. Eles são colocados como iguais, mas opostos, dentro da cena, literalmente um de frente para o outro, cara a cara. Para o francês, as belas terras são uma nova oportunidade, para o espanhol, uma prisão. Como lidar com essas duas visões irreconciliáveis no centro do conflito?
Mas As Bestas é, acima de tudo, uma obra de suspense, e não busca complicar as questões morais dentro de si. É necessário que Xan e Loren sejam, somente, uma eterna ameaça na vida de Antoine e sua mulher, Olga (Marina Föis). A presença de um dos dois marca sempre a promessa de violência ou, no mínimo, irritação. Toda a tensão do longa é construída a partir da interação entre essas três figuras, Antoine, Xan e Loren, com os dois últimos testando os limites do primeiro, que tenta se defender como pode, mas cuja posição como estrangeiro dificulta suas denúncias.
Há uma preocupação em explorar o espaço geográfico onde ocorre esse conflito, as cenas dão muito destaque ao deslocamento dos personagens, e logo ficamos íntimos com o vilarejo, cujos estabelecimentos já demarcam certos conflitos. A entrada de um bar, por exemplo, marca o início de mais um embate entre Antoine e Xan, acirrando ainda mais as tensões.
Dentro dessa briga de egos, marcada por outras questões anciliares, As Bestas é um thriller funcional. A escolha de simplificar Xan e Loren é fácil, mas funciona dentro do que se pretende, e as escolhas formais auxiliam no senso de ameaça. Os planos abertos permitem que possamos ver as silhuetas dos antagonistas ao fundo, circundando Antoine a todo momento. É uma tática que se repete, mas o perigo é sempre palpável. Antoine está quase sempre sozinho em seus confrontos com o par, em lugares desertos. A possibilidade de ser atacado e simplesmente sumir é sempre presente.
Mas os conflitos territoriais dão
espaço para um epílogo focado em Olga, onde a presença masculina é reduzida
drasticamente, mas não sabe muito o que fazer com essas nova perspectiva, fora
uma cena próxima ao final onde, ao invés de encarar Xan, Olga busca falar com a
mãe dele, em uma cena similar a que citei no início do texto, mas um tanto mais
drástica, pois as decisões já foram tomadas, e não há mais o que ser
compreendido.
Comentários
Postar um comentário