Neste momento no tempo, a Netflix possui em seu catálogo duas obras que tratam de temas similares: O fim do mundo e o que fazer da vida no cenário apocalíptico. Ambas animações, uma japonesa, a outra americana.
A primeira trata-se de Zom 100, também conhecido como Bucket List of The Dead ou 100 Coisas Para Fazer Antes de Virar um Zumbi, nome adotado pela (medíocre) versão live action da obra, também disponível na plataforma. No anime, o protagonista é Akira Tendo, cuja vida se tornou um verdadeiro calvário por conta do seu ofício, que o explora incessantemente, deixando pouco espaço para qualquer outra coisa. Ele dorme duas horas por dia, faz infinitas horas extras e passa humilhações diárias. E o salário, ó.
Logo, com a chegada do apocalipse zumbi, o fim do mundo representa para Akira uma oportunidade de ser livre, e poder, finalmente, fazer as coisas que deseja. Seus anseios vão de coisas simples, como limpar o próprio quarto, absurdas, como virar um super-herói e materialistas, como ter uma moto legal. Existem também as de natureza mais sentimentais, e no mangá, pouco a pouco, ele forma uma pequena comunidade ligada por esses desejos, de ter uma vida diferente do que era até então.
Do outro lado, temos Carol e o
Fim do Mundo, cuja proposta é radicalmente oposta: e se, no fim de tudo, o
trabalho fosse aquilo que nos conserva sãos?
Se você não considera essa visão
profundamente triste, tenho péssimas notícias.
Eles venceram, e o sinal para o
futuro está fechado.
Mais fácil imaginar o fim do
mundo que o fim do capitalismo
A protagonista é Carol Kohl, uma
mulher de 42 anos cujo mundo está, literalmente, acabando. Um enorme planeta
está em colisão com a Terra, e não há nada a se fazer. O prazo de validade da
humanidade é de, aproximadamente, 7 meses. Nesse contexto, as pessoas largaram
seus empregos e foram viver a vida, fazendo o que bem entenderem, “o trabalho
virou algo do passado”, informa um âncora de jornal logo no início da série,
mostrando uma praia lotada de pessoas, e o céu colorido com vários parapentes,
paraquedas e balões. Pessoas se abrem
para novas formas de se relacionar, de viver, e carpe diem é a regra
geral.
Menos para Carol, que, diante
desse cenário, decide não fazer nada além do que já fazia, ou seja, viver a sua
rotina dentro de uma sociedade capitalista. Logo no episódio piloto, ela parece
aliviada de receber uma cobrança do banco, somente para abrir a carta e
descobrir que se trata de um pedido do presidente da instituição para que ela
não mande mais cheques para o pagamento de faturas atrasadas, pois isso não faz
mais sentido.
Seus pais idosos adotaram o
nudismo e formam um trisal com o cuidador deles. Sua irmã está aprendendo
francês enquanto pula de paraquedas e viaja o mundo. A protagonista se vê
“obrigada” a curtir a vida quando ela só quer, na verdade, a normalidade.
No meio da curtição e liberdade,
Carol encontra seu ponto de paz: um escritório. Com mesas e computadores
enfileirados, organizado, crachás e roupas sociais. O único som é o dos
teclados e dos grampeadores. O paraíso. Se trata de um espaço conhecido como “A
Distração”, todos os funcionários são pessoas como Carol, que perderam seu eixo
com o iminente fim e só querem uma rotina banal, longe das massas que celebram
outro tipo de vida.
Só para deixar bem claro: Carol
e O Fim do Mundo não vilaniza aqueles que fizeram escolhas
mais hedonísticas diante do fim. Não é uma narrativa com vilões ou antagonistas
nesse sentido. Por outro lado, há uma glorificação do “normal”, que me lembra
muito os conservadores que afirmam que o “conservadorismo é o novo punk/contracultura”,
e não a visão predominante na sociedade. Mas antes...
Um pequeno adendo
Para fins de clareza, irei fazer
uma distinção importante ao longo dessa analise entre Trabalho e trabalho. O
primeiro compreende todo o esforço humano de produzir algo ou realizar
determinada tarefa. Plantar e colher frutos e verduras, criar uma obra de arte,
limpar pratos, etc. Este texto é um Trabalho. Trabalho é uma parte fundamental
da existência humana.
Já o trabalho é aquele onde
vendemos nosso tempo para outrem, que só traz retorno financeiro (no melhor dos
casos) e, de modo geral, consome nossas vidas, de modo que até o tempo fora
dele é afetado.
Essa não é uma definição
cientifica, mas é a que eu vou usar para facilitar a compreensão em alguns
momentos, e explicitar que não estou fazendo um apelo à preguiça pura e
simples.
A necessidade patológica do
normal
É difícil não enxergar Carol e
o Fim do Mundo sem pensar no contexto atual das relações de trabalho,
transformadas pela pandemia, especialmente diante da imposição do home
office durante o período de isolamento social, não mais um privilégio, mas
uma necessidade. Logo, uma vida um pouco mais livre (na medida do possível)
despontou no horizonte. Sem necessidade de comuta, as pessoas tinham mais tempo
para si e para os outros, sem a vigilância constante de patrões ou colegas, era
possível relaxar mais.
Isso sem contar os diversos
materiais que ficaram disponíveis pela internet. Falando por experiência
pessoal, durante a pandemia, tive acesso a aulas, oficinas e festivais que,
dificilmente, poderia participar presencialmente. Os filmes de uma mostra de
cinema no Nordeste não tinham mais o obstáculo do preço das passagens e
estadia, era somente abrir o notebook e procurar o site.
Mas a reversão dessas medidas já
virou até meme. Se antes as empresas demonstravam preocupação com os
funcionários, e apontavam que o home office pouco afetava o desempenho
geral, a partir de 2022 o discurso passou a ser outro, apoiado por um sem fim
de pesquisas duvidosas, sobre a superioridade do presencial, e a importância
disso para a “cultura” da empresa, seja lá o que isso quer dizer. Poder fazer
carinho nos seus gatos durante o almoço, ou buscar seus filhos na escola pós
expediente? Nada disso! O lance é tomar café aguado na cozinha da empresa, à
luz das lâmpadas fluorescentes e aguardando na fila do micro-ondas.
"Passei metade do meu horário de almoço tentando esquentar minha marmita" |
Mas essa semente já estava
presente mesmo durante a pandemia, com os negacionistas clamando para um
retorno à normalidade independente do crescente número de mortos. Vale lembrar
também: quase nada parou. Os ônibus continuaram lotados, assim como os trens. A
pandemia não acabou, mas seguimos como sempre, é preciso retornar a
normalidade acima de tudo, mesmo essa normalidade tenha se demonstrado
insuficiente para lidarmos com crises. No fundo, todo mundo concordou com os negacionistas.
É preciso resgatar a “vida normal”
Esse resgate move muito de Carol
e o Fim do Mundo, cujo criador, Dan Guterman, descreve como uma “carta de
amor à rotina. Um show sobre os confortos da monotonia”. Que esses elementos,
na cabeça de Guterman, estejam intrinsicamente ligados ao ambiente de trabalho,
revelam uma pura falta de imaginação, e se transforma em uma celebração do status
quo, pura e simplesmente. Afinal, o trabalho, hoje, é um elemento
pouquíssimo discutido e investigado fora de ambientes acadêmicos. Todo político
promete mais empregos, mas quase ninguém se preocupa com a qualidade dos mesmos,
como o sociólogo britânico David Frayne aponta no seu livro The Refusal of
Work: “Embora questões importantes como desigualdades salariais e condições
de trabalho ruins ainda sejam discutidas, é mais raro que os comentaristas
sociais questionem o status ético do trabalho em si”.
Mesmo dentro dessa celebração proposta por Guterman, há o reconhecimento do trabalho como algo que subtrai da vida das pessoas. Uma das personagens, Donna, possui um episódio dedicado à ela onde, durante a ceia de Natal, ela se dá conta dos diversos momentos familiares que perdeu por estar ocupada. No álbum de fotos, uma das fotos é dela, vestida de Papai Noel enquanto dorme no sofá, exausta após um turno duplo em um dos seus empregos. É um evento absolutamente triste, uma mãe impedida de estar com seus filhos por conta do trabalho, mas Carol tenta vender essa situação como algo alegre. “Esse foi o meu melhor Natal”, declara um dos filhos. Donna novamente lamenta a sua ausência, mas os filhos a abraçam, dizendo que tudo está bem.
Não tenho problema que os
personagens ajam dessa maneira, mas me incomoda a falta de crítica dos
realizadores sobre essa situação, e a série sobre “os confortos da monotonia”
se torna uma celebração da ética protestante de trabalho, que separa famílias em
nome de um ideal absurdo. O pior, Donna está na posição perfeita para,
finalmente, passar tempo com sua família. Mas não, ela retorna a “Distração”,
passar seus últimos dias com pessoas que ela mal conhece.
Tudo pelo trabalho, nada fora
dele
Outro episódio muito simbólico é
o quinto, “David”, onde um dos colegas de trabalho, que dá nome ao capítulo,
morre no escritório. Carol, Donna e Luiz, outro personagem recorrente ao longo
da série, decidem retornar o corpo à família. Chegando na casa onde David
residia, eles se deparam com a esposa do mesmo, que está vivendo um
relacionamento poli amoroso com vários outros homens, todos parecidos com
David, e parece ter se esquecido completamente do “original”. O trio então vai
atrás de um parente do falecido colega, mas descobrem que este, também, morreu
recentemente.
Sem grandes opções, o trio crema
o corpo de David, e decidem fazer sua despedida no trabalho, que comove alguns
colegas. Após despejar as cinzas, a urna é depositada na antiga mesa de David. O
mesmo local de sua morte.
Netflix não deixa tirar print. Segue uma representação artística da cena |
Nem após a morte pode se fugir do
trabalho. A história do zumbi surgiu como um temor dos escravos haitianos de
ser obrigado
a trabalhar no além vida, mas para os realizadores de Carol e o Fim do
Mundo, ter seu lugar de descanso final no ambiente de trabalho, o mesmo
onde o personagem morreu, vale enfatizar, é algo digno de uma beleza
melancólica, e não lamento.
Essas situações mostram os
personagens da série como sujeitos neoliberais perfeitos, onde sua
subjetividade está inteiramente ligada ao ambiente de trabalho. Mesmo que isso
não esteja necessariamente ligado ao desempenho da empresa, pois é fortemente
inferido que as tarefas dentro da “Distração” não estão ligadas a nada real e
só servem para gastar tempo, a razão de ser daquelas pessoas está ligada ao
ambiente do escritório, e se tornam autômatos, repetindo tarefas sem sentido,
somente para se manterem estáveis mentalmente.
E há a glorificação disso, como
se esse comportamento, extremamente comum, fosse digno de nota. Certo momento,
a irmã de Carol, Elena, está na Espanha, cercada de figuras diversas, falando
sobre sua irmã, como uma pessoa que “segue seu próprio rumo na vida”, enquanto
Elena se vê como alguém que sempre seguiu o que os outros faziam. Uma afirmação
completamente absurda, Carol só está repetindo o comportamento de boa parte da
sociedade, e até mesmo dentro do universo da série, era o padrão até então.
Se Guterman não vilaniza as
pessoas que estão fora da “Distração”, como apontei mais acima no texto, há a
tentativa de pintar todo o comportamento fora disso como algo sem graça. Luiz,
por exemplo, lembra que na juventude fez um mochilão pelo mundo, conhecendo os
mais variados lugares e experiências, mas afirma que tudo virou um borrão,
mesmo sendo melhor a experiência da sua vida, e logo em seguida, afirma adorar
a sensação de “apertar um grampeador”. Outro momento mostra o escritório como
uma literal luz no meio da escuridão. Um comportamento que mostra o completo
esvaziamento da vida humana, para Carol e o Fim do Mundo, é algo belo e
acalentador.
Onde você estará no fim de
tudo?
Como se para mitigar a crueldade
presente na narrativa, a série torna o ambiente de trabalho num ambiente de
comunidade. Pouco a pouco, Carol conquista a todos, e cria um ritual de
realizar um happy hour pós expediente no Applebee’s, uma rede de fast
food americana.
Assim, enquanto o planeta cai na
Terra, todos os membros da “Distração” estão num espaço despido de qualquer
personalidade, assim concebido para ser replicado nas mais de mil franquias
espalhadas pelos Estados Unidos. No lugar de família, amigos, ou quaisquer
outros tipos de conexões, colegas de trabalho. Era para ser uma celebração da
rotina, mas, ao fim, Carol e o Fim do Mundo só consegue ser um lembrete
triste da falta de alternativas de vida. As coisas poderiam ser diferentes, mas
não conseguimos nem imaginar outras possibilidades mais. Só podemos marchar
rumo ao fim, como se nada estivesse acontecendo.
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