Pular para o conteúdo principal

Uma Sepultura na Eternidade (1967), de Roy Ward Baker

 

O horror da franquia Quatermass sempre teve mais a ver com as implicações que a história apresentava do que com os eventos em si. É claro que as criaturas alienígenas eram assustadoras, mas a descoberta da capacidade de reprodução do monstro em The Quatermass Experiment foi o ponto principal que tornou o alienígena tão aterrorizante, ainda mais quando percebemos que o protagonista, Bernard Quatermass, interpretado por Brian DonLevy na época, não se importava realmente com o fato de a humanidade estar próxima da extinção, sua única preocupação era que esses eventos atrapalhassem o desenvolvimento do seu foguete, experimento que deu origem a todo problema. Nos momentos finais da obra, o cientista caminha escuridão à dentro, determinado a seguir, independente das consequências.

Em Quatermass II, a dominação alienígena é sutil, assumindo gradualmente o controle de membros do governo, protegendo a colonização por meios burocráticos, usando o exército e os políticos para se protegerem, enquanto Quatermass e seus aliados precisam descobrir lentamente quem é confiável ou não, se ainda há tempo para salvar o mundo.

Mas é em Quatermass and The Pit, traduzido no Brasil como Uma Sepultura na Eternidade, lançado em 1967, que as implicações da descoberta ganham o palco principal, afetando não apenas os espectadores, mas também os personagens e o mundo ao redor deles. O filme gira em torno de uma descoberta fascinante: crânios pré-históricos são encontrados durante uma expansão do metrô em Londres, anteriores até mesmo à existência humana. Depois de mais algumas escavações, outra descoberta incrível: uma cápsula estranha, feita de algo parecido com metal, que, a princípio, se acredita ser uma bomba não explodida da Segunda Guerra Mundial, mas que depois se revela ser um item muito mais aterrorizante: uma sonda marciana, contendo cinco corpos alienígenas e uma verdade surpreendente que abalará o mundo até o âmago.

É uma história de ficção científica com terror, mas o seu desenrolar se assemelha muito mais a uma história de casa mal-assombrada, com objetos que se movem e avistamentos de fantasmas. No entanto, a assombração aqui é dupla: Quatermass,  interpretado por Andrew Keir, encontra escritos antigos em que as pessoas testemunharam visões de um "anão horrendo" movendo-se pelas paredes no mesmo local da escavação. Mas outra memória sinistra cobre a trama, a da guerra. Londres sofreu muito durante os bombardeios em massa perpetrados pelos nazistas, que mataram cerca de 40 mil civis e se tornaram uma lembrança dolorosa para muitos outros.

Esse fato vêm à tona em diversos momentos, especialmente pelo Coronel Breen (Julian Glover), ele próprio um lembrete de que a guerra ainda está à espreita. A primeira cena do filme mostra que o projeto de Quatermass de colonizar a lua está sendo assumido pelos militares, apesar dos protestos do protagonista. Quando Quatermass conta a verdade sobre as cápsulas à imprensa, a lembrança do conflito é usada como escudo, com o governo alegando que a espaçonave nada mais é do que um resquício da propaganda nazista, feita para confundir as massas e criar o caos.

Esse encobrimento do governo é outro elo temático dentro da narrativa de Uma Sepultura na Eternidade, referente ao imenso poder da memória. Durante a pesquisa, Quatermass e sua equipe descobrem que os marcianos não são tão alienígenas, afinal, mas nossos ancestrais muito distantes. A presença da nave espacial desperta nas mentes humanas lembranças tênues do que aconteceu há cinco milhões de anos, quando eles vieram à Terra e manipularam geneticamente os habitantes do planeta, garantindo, de certa forma, sua sobrevivência. E o que aconteceu foi, é claro, algo muito semelhante à guerra.

Na sequência em que as memórias gravadas são mostradas a um grupo de membros do governo, os marcianos correm em massa em meio a uma paisagem bombardeada, tudo muito tênue, impreciso, como um fantasma, mas é suficiente para inferir o cenário bélico que os fez deixar Marte. A história se repete, mesmo com milhões de anos de diferença, a sombra da violência pairando sobre nossa existência. Junto com uma iconografia e momentos muito semelhantes aos de filmes sobre lugares assombrados - avistamentos de figuras invisíveis que abalam uma pessoa até o âmago, objetos que se movem -, Uma Sepultura na Eternidade também traz as repetidas imagens e referências ao combate, que moldou grande parte do mundo por tanto tempo.

Todas essas imagens se chocam no clímax semi apocalíptico. Revela-se que a nave é inteligente e começa a enviar sinais psíquicos por Londres, levando a população a um frenesi furioso, destruindo a cidade. Prédios explodem, ruas racham, enquanto a população, com a memória embaralhada, destrói tudo o que vê, enquanto a imagem fantasmagórica de um marciano paira sobre tudo, "a imagem do demônio", afirma um personagem.

É claro que, no final, a influência marciana é cortada e todos voltam ao normal... mas talvez não. As imagens finais da série Quatermass sempre foram sinistras. O primeiro com o protagonista não percebendo totalmente que suas ações quase mataram a humanidade, o segundo colocando em cheque a finalidade da invasão alienigena. A tendência continua no terceiro episódio, mas de forma muito mais profunda. Não há resolução, nenhuma frase inteligente no final de tudo, há apenas silêncio. Quatermass e seus aliados trocam olhares entre os escombros, sujos, cansados e chocados. Não parece uma vitória. A humanidade perdeu para as imagens de seu passado, distante e recente, incapaz de se libertar do conflito. Quão longe estamos do destino de nossos ancestrais? Não há resposta, mas, a julgar pelo olhar que os personagens lançam para a tela, está mais perto do que eles pensavam.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Zona de Interesse – Horror seguro

  Poucos conceitos sociológicos permanecem tão atuais quanto o da “banalidade do mal”, cunhado por Hannah Arendt durante o julgamento de Adolf Eichmann, onde ela observou que o nazista não era uma grande mente do mal, mas sim um burocrata, cujo transporte e extermínio de milhares de judeus era uma questão de cumprir ordens e fazer o seu trabalho, pura e simplesmente. Nesse sentido, Zona de Interesse poderia ser chamado de “Banalidade do Mal – O Filme”, onde diretor Jonathan Glazer busca retratar a vida “comum” de uma família nazista , que é vizinha de Auschwitz, e o campo de extermínio é simplesmente a paisagem acima do alto muro que circunda o ambiente dos Höss enquanto seus filhos brincam nos jardins e a matriarca, interpretada por Sandra Hüller, recebe visitas e coordena suas empregadas. Formalmente, o longa é o mais direto possível, as composições são estáticas, rígidas e evitando qualquer tipo de manipulação emocional. Não há closes, por exemplo, e há uma certa naturalida...

Godzilla em três momentos

  Gojira, 1954. Dir. Ishiro Honda Um momento em particular chama atenção em Gojira , que envolve personagens sem nome, cuja presença de tela não dura mais que meio minuto. No meio do caos e destruição causados pelo monstro, uma mãe está presa com suas três filhas dentro de um prédio em chamas. Abraçada às crianças, a mãe declara: “Logo estaremos com seu pai, só mais alguns minutos”. The aftermath of Godzilla's attack (1954) O filme de Ishiro Honda é despido de suspense. Os protagonistas nunca estão no meio do perigo, a narrativa faz questão de posicioná-los longe da fúria do monstro radioativo, meras testemunhas incapazes de fazer algo para impedir o arrasamento de Tóquio. Por outro lado, a obra nunca foge das imagens da guerra, e é nisso que reside sua força. Vemos uma criança sendo examinada com um contador Geiger, que apita freneticamente. Outra lamenta a morte da própria mãe diante dos seus olhos, em um hospital lotado de feridos. A principal cena de ataque do longa res...

Ferrari - O que é um nome?

Saindo da sessão de Ferrari , minha recepção inicial foi de certa frieza. Com o cinema de Michael Mann, me acostumei com ritmos mais energizados de suas obras. Os tiroteios de Fogo Contra Fogo e Inimigos Públicos , o final grandioso, mas melancólico, de O Último dos Moicanos ou a simplesmente triunfal conclusão de Ali , que reafirma a posição do biografado como um dos maiores boxeadores de todos os tempos, encontrando o seu lugar no mundo. Não que Ferrari seja lento, tedioso ou coisa do tipo. O cuidadoso olhar de Mann para ação segue ali nas corridas, nos colocando ao lado do piloto, observando cada troca de marcha, freada, acompanhando cada curva fechada e aceleração. Mas esse não é o foco. Se com Muhammad Ali, em 2001, o diretor traça o retrato de um homem entendendo o seu poder e posição, com Enzo Ferrari (Adam Driver), a questão é outra. O lendário dono da Ferrari sabe exatamente quem ele é, mas o que isso significa para aqueles que o cercam? Ao invés de buscar representar to...