Pular para o conteúdo principal

Um Tiro na Noite (1981), de Brian de Palma



Brian De Palma ama cinema, mas também é extremamente cético em relação ao seu impacto no mundo. Essa relação conflitante com a sétima arte e seus métodos está no coração da narrativa de Um Tiro na Noite (Blow Out), um filme que, ao seu modo, navega pela história do cinema e usa de seus dispositivos para desvendar o mistério central.


Abrindo com uma clara homenagem ao giallo, em um filme dentro do filme, DePalma apresenta o trabalho de Jack Terry (John Travolta), que trabalha com efeitos sonoros para uma empresa de filmes B. Uma noite, gravando sons para poder reutilizar nas produções, o som de um tiro muda a vida de Jack, seguido de um carro caindo em um lago próximo. Ao mergulhar para resgatar possíveis sobreviventes, Jack encontra duas coisas: Uma pessoa morta, cuja identidade ele desconhece, e outra ainda viva, uma mulher chamada Sally (Nancy Allen), que é levada ao hospital. Lá, Jack descobre que o outro ocupante do carro era o governador da Filadélfia, que estava à frente das pesquisas para presidência. O personagem é interpelado por um dos assessores do político, que pede para ele levar a garota dali e “esquecer que aquilo tudo aconteceu”. Ao escutar novamente as gravações da noite, Jack confirma a presença do tiro, e se vê no meio de uma conspiração nacional.


Um Tiro na Noite é uma combinação muito singular de pelo menos três filmes. Há ali toques de Todos Os Homens do Presidente, com o clima conspiratório e paranóico que permeia a trama, A Conversação, de Coppola, por virtude do dispositivo narrativo e, principalmente, por Blow Up, do Antonioni, mas se este último era pautado pela incerteza, com o protagonista consumido pela dúvida se realmente o que fotografou foi um crime, e a busca pela certeza alimentando ainda mais essa angústia, Terry tem o problema contrário: em nenhum momento ele duvida do que escutou, a questão é provar para os outros.


E para isso ele busca o que faz de melhor, que é construir um filme, e nesse sentido, parece significativo que Sally seja uma maquiadora, uma artista visual, se unindo a um artista estritamente sonoro. Para reconstituir a cena do crime, Terry busca a menor unidade possível de um, que é o frame, por meio de fotos tiradas por um fotógrafo que estava na cena, e em posse disso, começa seu trabalho, que envolve uma linda sequência onde o personagem remete aos métodos do chamado “Primeiro Cinema”, que envolviam, em grande parte, fotografias sequenciais, e uma espécie de flip book é construído, em cima disso um filme rudimentar é montado e assim sucessivamente.


Mas De Palma reconhece que imagens somente não bastam, já que elas podem mentir, e frequentemente são feitas com esse propósito. Não é de graça que o Um Tiro na Noite comece efetivamente mentindo para o espectador, com um filme falso - que a princípio não se assume como tal - e indo mais a fundo mostrando os artifícios envolvidos nesta introdução, com outro personagem falando quais sons devem ser aprimorados, em especial um grito que deve ser dublado por cima. Um ponto importante da história é a necessidade do testemunho do par acompanhando as imagens, não elas somente.


Apesar do escopo nacional da trama, ela se mantém firme em uma escala reduzida, contando basicamente com três personagens, os já citados Jack e Sally, e o assassino Burke (John Lithgow), que é quase um vilão de slasher (ou giallo, como provavelmente deve ser a preferência de De Palma), chegando até mesmo a matar uma de suas vítimas após o ato sexual, ato típico do gênero. A diferença é que ele tem uma agenda política, e é levemente mais sofisticado em seus métodos, e apesar de inicialmente fazer parte de uma trama maior, ele age largamente por conta própria, agindo contra a vontade de seus superiores.


Mas mesmo com esse foco diminuto, De Palma a todo momento lembra que essas pessoas lutam para encobrir ou revelar algo que pode afetar todo os Estados Unidos. Iconografia americana é uma presença frequente no filme, cortesia de um evento ficcional “Liberty Day”. Em qualquer outro filme, poderia ser sinal de patriotismo, mas essas imagens são quase sempre acompanhadas de eventos que “prejudicam” a aura das mesmas. A imagem mais marcante do longa envolve uma mulher gritando na frente da bandeira americana.


Com Um Tiro na Noite, De Palma coloca todo seu conhecimento e amor pelo cinema a serviço de uma trama que nos convida a refletir sobre o papel das imagens no mundo e expõe o limite das mesmas, se utilizando de uma série de referências, mas construindo uma identidade única e inesquecível. 


Texto publicado originalmente no site Cineplot

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Zona de Interesse – Horror seguro

  Poucos conceitos sociológicos permanecem tão atuais quanto o da “banalidade do mal”, cunhado por Hannah Arendt durante o julgamento de Adolf Eichmann, onde ela observou que o nazista não era uma grande mente do mal, mas sim um burocrata, cujo transporte e extermínio de milhares de judeus era uma questão de cumprir ordens e fazer o seu trabalho, pura e simplesmente. Nesse sentido, Zona de Interesse poderia ser chamado de “Banalidade do Mal – O Filme”, onde diretor Jonathan Glazer busca retratar a vida “comum” de uma família nazista , que é vizinha de Auschwitz, e o campo de extermínio é simplesmente a paisagem acima do alto muro que circunda o ambiente dos Höss enquanto seus filhos brincam nos jardins e a matriarca, interpretada por Sandra Hüller, recebe visitas e coordena suas empregadas. Formalmente, o longa é o mais direto possível, as composições são estáticas, rígidas e evitando qualquer tipo de manipulação emocional. Não há closes, por exemplo, e há uma certa naturalida...

Godzilla em três momentos

  Gojira, 1954. Dir. Ishiro Honda Um momento em particular chama atenção em Gojira , que envolve personagens sem nome, cuja presença de tela não dura mais que meio minuto. No meio do caos e destruição causados pelo monstro, uma mãe está presa com suas três filhas dentro de um prédio em chamas. Abraçada às crianças, a mãe declara: “Logo estaremos com seu pai, só mais alguns minutos”. The aftermath of Godzilla's attack (1954) O filme de Ishiro Honda é despido de suspense. Os protagonistas nunca estão no meio do perigo, a narrativa faz questão de posicioná-los longe da fúria do monstro radioativo, meras testemunhas incapazes de fazer algo para impedir o arrasamento de Tóquio. Por outro lado, a obra nunca foge das imagens da guerra, e é nisso que reside sua força. Vemos uma criança sendo examinada com um contador Geiger, que apita freneticamente. Outra lamenta a morte da própria mãe diante dos seus olhos, em um hospital lotado de feridos. A principal cena de ataque do longa res...

Ferrari - O que é um nome?

Saindo da sessão de Ferrari , minha recepção inicial foi de certa frieza. Com o cinema de Michael Mann, me acostumei com ritmos mais energizados de suas obras. Os tiroteios de Fogo Contra Fogo e Inimigos Públicos , o final grandioso, mas melancólico, de O Último dos Moicanos ou a simplesmente triunfal conclusão de Ali , que reafirma a posição do biografado como um dos maiores boxeadores de todos os tempos, encontrando o seu lugar no mundo. Não que Ferrari seja lento, tedioso ou coisa do tipo. O cuidadoso olhar de Mann para ação segue ali nas corridas, nos colocando ao lado do piloto, observando cada troca de marcha, freada, acompanhando cada curva fechada e aceleração. Mas esse não é o foco. Se com Muhammad Ali, em 2001, o diretor traça o retrato de um homem entendendo o seu poder e posição, com Enzo Ferrari (Adam Driver), a questão é outra. O lendário dono da Ferrari sabe exatamente quem ele é, mas o que isso significa para aqueles que o cercam? Ao invés de buscar representar to...