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O Assassino (2023) - O longo processo de se entender no mundo

 



O grande truque do liberalismo é dar um verniz brilhoso a posição do trabalhador, onde ele não é mais explorado pela sua força de trabalho, mas essa força é, justamente, o capital. Ninguém é mais trabalhador, funcionário, mas sim colaborador, ou empresário em potencial, cujo esforço particular o irá alavancar acima de todos.

A narração inicial de O Assassino encarna perfeitamente certos ditames dessa visão, absolutamente individualista e além de ideologias. “Empatia é uma fraqueza”, enfatiza o protagonista sem nome que carrega o título do filme, interpretado por Michael Fassbender. Um mantra que será repetido ao longo do filme, assim como “não improvise, antecipe”. O que parece ser uma descrição muito objetiva de como as coisas funcionam, logo ela passa a revelar como o personagem se entende na sociedade: como um ser à parte, cujas ações não afetam tanto assim o mundo. Enquanto o discurso acontece, o assassino está realmente acima de todos, olhando por uma pequena janela a vida lá fora, a distância, sem afetar ou ser afetado por ela, um voyeur. Mas ele reconhece a lógica do mundo: “Poucos sempre exploraram muitos, esse é o pilar da civilização. Garanta que você esteja entre os poucos, não entre os muitos”, declara, enquanto olha por uma luneta os transeuntes na rua abaixo.

É uma longa introdução, de pouco mais de 20 minutos até a trama se iniciar de fato. A hora e meia seguinte coloca o discurso à prova, mas já mostra sinais de que o rumo é outro. Por exemplo, é revelado que o Assassino está esperando seu alvo em um escritório da WeWork, startup que recentemente pediu falência. O liberal operando nas ruínas do neoliberalismo.

O mundo da contravenção como um comentário sobre relações mais formais de trabalho não são raros. Vale lembrar de Profissão: Ladrão, de Michael Mann, onde Frank (James Caan) apresenta uma visão quase marxista do labor diante de Leo (Robert Prosky) durante uma negociação. Mas se Frank enxergava o roubo como meios para um fim, o de tornar real sua vida ideal, com casa no subúrbio, esposa e filho, em 2023, o Assassino é seu trabalho. Nem ao menos um nome ele possui, e é uma gag recorrente os diversos nomes que ele usa ao longo do filme. Ele não se enxerga como ele de fato é: uma peça numa enorme engrenagem.

Por isso, quando ele erra o seu primeiro alvo do filme, após tanta preparação e esforço próprio, nem convém a ele pensar nas consequências, afinal, na sua cabeça ele faz parte dos “poucos”.  Entretanto, a consequência vem a galope: ao voltar para casa, ele a encontra destruída, e sua namorada, espancada.

É a partir desse ponto que O Assassino inicia sua jornada para entender aquilo que Frank já sabia nos anos 80: seu sindicato é sua arma. Ele passa a caçar os responsáveis pela situação, num típico filme de vingança, cujo protagonista, apesar de ser portar como um profissional é, na verdade, meio idiota. Há algum humor extraído desse fato, especialmente quando ele reencontra o seu “chefe”, por assim dizer. “Eu não acredito que você voltou para casa”, exclama Hodges (Charles Parnell). Ao torturá-lo em busca de informação, o Assassino erra a mão, e acaba o matando.

Mas o longa não é uma comédia de erros e até deixa esse aspecto um pouco de lado a partir desse ponto, e se torna um filme um tanto burocrático até, muito similar a diversos outros filmes de vingança. Mas o comentário sobre a estrutura da sociedade persiste. Além da WeWork, a Amazon também aparece, servindo como uma facilitadora de alguns itens necessários para o protagonista realizar seu trabalho, até mesmo o crime faz girar a grande roda do capital.

Faz sentido que o alvo final do Assassino seja um investidor, representante máximo do sistema de precarização que norteia o filme, um homem tão acima de tudo, em vários sentidos, que do alto do seu prédio nada se vê do lado de fora. O cenário cria uma oposição muito forte ao do início do filme, onde o protagonista, também no alto, ainda via o mundo lá fora, mesmo numa posição de distância. É no confronto com o investidor, chamado Clayborne (Arliss Howard), que o assassino percebe a fragilidade da sua posição: o ataque à sua casa e namorada não era sobre vingança, um ajuste de contas, mas uma simples eliminação de uma peça defeituosa, “limpeza no corredor três, foi assim que me explicaram”, diz Clayborne, tão removido da realidade da situação que ele nem parou para refletir sobre o que seria a tal limpeza.

No fim, o Assassino elimina quase todos os responsáveis, com exceção de Clayborne, mas ele está longe da paz. Sua ilusão de pertencer a uma pequena elite foi destruída. Ele pode, sim, deitar ao sol na sua bela casa na República Dominicana, mas o tremor no olho não engana: ele sabe que há algum, muito acima dele, decidindo seu destino, com o de muitos outros. Afinal, ele é só mais um assassino.

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