Ao rever Avatar mais de dez anos após sua estreia, uma palavra ecoou pela minha cabeça: revolucionário. Não no sentido tecnológico, exaustivamente abordado à época e levantado sempre que o filme é citado. Essa minha impressão se dá por conta de uma proposta do filme mesmo, que apresenta o modo de vida Na’vi como, essencialmente, completo. “Não sei o que podemos oferecer a eles que eles já não possuam” desabafa Jake Sully (Sam Worthington) em determinado momento, antes dele ir para o outro lado do conflito. Em um mundo tão interessado em ir para frente sem olhar onde pisa, a ideia que um modo de vida simples, em conexão com a natureza, baste, e pode ser até melhor que aquilo demarcado como “sociedade avançada”, ser apresentada em um blockbuster desse calibre, me pareceu algo profundamente transgressor.
Essa revolução, entretanto, é falsa. Não há, nem hoje, nem em 2009, a possibilidade de Avatar ou James Cameron serem revolucionários no sentido sociocultural da palavra. Suas ideias podem estar no lugar correto de preocupação ambiental, com os povos nativos e imperialismo, mas sua execução está atrelada a uma série de práticas que criam um distanciamento da materialidade dessas questões. Se importar com os Na’vi não leva para nada além disso, e ainda ofusca um fato importante: Avatar é, também, uma ferramenta imperialista.
Não é uma afirmação muito difícil de se fazer e é até óbvia, mas parece se perder de vista, especialmente hoje. Num contexto que o grande vilão do cinema é a Marvel e seu cinema ultra processado, qualquer coisa fora desse meio, mesmo que ainda americano, se apresenta como um respiro para o “Verdadeiro Cinema”. Mas, Marvel é Disney, assim como Avatar, que mesmo em 2009 possuía um “dono” torpe, a Fox, criadora da Fox News, um dos principais meios de informação da extrema-direita. Enquanto Avatar é alçado a um patamar de salvador da experiência cinematográfica, sua presença mercadológica é sufocante. O Caminho da Água ocupa 80% das nossas salas hoje.
Sobre esse aspecto, não irei me aprofundar muito, e recomendo buscar os conteúdos de Marina Rodrigues e, para muitos, essa discussão nem mesmo importa ao se falar de um filme, pois é algo fora da telas, extra narrativo. Tudo bem, a partir de agora, me comprometo a falar sobre somente aquilo que acontece dentro das imagens de Pandora.
Conforme cito no texto, há uma evidente valorização da vivência Na’vi, e boa parte da estrutura dos dois filmes se baseia na exploração disso, seja como passeio mesmo ou na forma que os rituais tradicionais daquela população se tornam importantes narrativamente. Toda a evolução de Jake passa pelas tradições nativas, que passam por meio da conexão com Eywa, a figura divina venerada pelos seres azuis.
Mas essa aceitação é condicional. Cameron não observa as tradições Na’vi como algo digno de valor em si. Não, isso só passa a acontecer a partir do momento que a ligação com Eywa é entendia como algo cientifico, passível de mensuração e compreensão, portanto, “real”. “Não se trata de algum tipo de vudu”, diz Grace (Sigourney Weaver) para justificar a preservação desse modo de vida. Diante disso, nem mesmo minha observação inicial sobre o modo de vida Na’vi bastar parece se sustentar: para Cameron, a natureza se trata somente de outra tecnologia, os nativos se conectam com os outros seres por meio de fios, cuja vontade é subjugada. Nada tão revolucionário assim. Os ikrans, seres voadores usados pelos Na’vi, tem valor por servirem à eles, assim como um sem fim de animais que, no clímax do primeiro filme, ganham destaque por sua utilidade na batalha final. Não deveria ser uma surpresa que, no fim das contas, é o utilitarismo que fascina Cameron¹ e torna algo digno de apreciação, por mais que Avatar, na sua superfície, rejeite a tecnologia, ele é produto dos mais avançados aparatos disponíveis na indústria cinematográfica. Essa contradição teria que aparecer de alguma maneira.
Assim, quando o cineasta filma o bombardeio à Hometree, morada dos omaticaya, uma pergunta me passa pela cabeça: O que exatamente está sendo lamentando aqui? A câmera é quase documental, próxima ao chão, tremendo com cada explosão, observando de perto os Na’vi correndo das bombas de gás disparadas pelo exército humano. Lembro de quase chorar vendo esta cena quando tinha 15 ou 16 anos. Ainda me comovo, mas um desconforto também se apresenta, devido à similaridade com imagens que, hoje, fazem parte de mim, de contextos parecidos, mas não possuem o espaço de Avatar.
Quantas pessoas puderam assistir, se comover e revoltar quando, por exemplo, bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas em famílias protegendo suas casas em Na Missão, com Kadu? Antes da grande batalha, Jake proclama “Essa terra é nossa!”, mesmo nome de um filme produzido por nativos brasileiros, que eu não assisti, e creio que poucos viram. Martírio, dirigido por Vincent Carelli, por exemplo, aborda a expropriação das terras dos Guarani-Caiwoáa, algo muito presente na franquia de Cameron.
Forças nativas contra invasores, a busca por um lar e a necessidade de lutar por ele. As mesmas tramas presentes em Avatar estão em vários documentários brasileiros. Mas enquanto essas questões encantam e emocionam milhões mundo afora por acontecer em Pandora, as imagens da realidade dessas pautas tem sorte de encontrar qualquer tipo de público. James Cameron não faz segredo que a história foi motivada pela luta de povos nativos americanos, mas, ironicamente, sua arte impede que os próprios nativos possam contar suas histórias e ter seu espaço.
Avatar não é unicamente responsável por isso, é claro. São anos de dominação americana, cultural e de mercado, que construiu um público com predileção por um certo tipo de narrativa, empurrando outras para fora das salas de cinema e da atenção de boa parte da população, transformando nossas histórias em algo estranho para nós mesmos. Logo, as produções americanas se tornam a “régua” de como um filme deveria ser, a qualidade de uma obra brasileira depende do quanto se aproxima desse padrão.
Diante disso, o que fazer? Não há
uma resposta ou solução simples, uma mudança real passa por políticas públicas
que demoram anos para tomar efeito, seja para o cinema brasileiro ter mais
espaço nas telas de exibição, quanto de reeducação do público perante estas
obras. Para nós, críticos, talvez um pouco mais de desconfiança seja saudável. Avatar é um bom filme? Sim, mas só por
isso devemos ignorar que ele faz parte de um maquinário industrial que míngua
outras expressões artísticas? É preciso ter isso em mente antes de apresentar
um filme como o salvador da sétima arte. Ele pode até ser, mas ao custo de
diversas outras formas de fazer cinema.
¹ - Isso é um pouco retificado por meio dos tulkuns na sequência, que possuem relação muito mais espirital com os Na’vi.
Texto originalmente publicado no site Cineplot
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